sábado, 17 de novembro de 2007

a carta a Garcia

Esta semana tive o prazer de me cruzar com a história que deu origem à expressão "levar a carta a Garcia". Trata-se de um mensageiro que teve como missão levar a carta a um Comandante, chamado Garcia, escondido em local incerto, nas montanhas.
A missão foi-lhe atribuida porque, concluiram no Departamento de Recursos Humanos, se alguém fosse capaz de levar a carta a Garcia, seria aquele soldado.

A reflexão, que aqui limitarei ao mínimo possível, é muito actual. Fala-se da noção de cumprir missão, ou dever. Ainda hoje é difícil encontrar pessoas que seriam capazes de levar a carta a Garcia, onde quer que ele estivesse...

Vou então dar algumas das razões pelas quais não o fariam

a razão óbvia - não me apetece;
a sensível - Garcia não merece ler esta carta;
a hipocondríaca - Garcia tem uma doença contagiosa;
a do tipo que "se pudesse seria administrador, sabendo que nunca o vai ser" - eu acho mal e se fosse eu a mandar, nunca escreveria esta carta;
o desleixado - ele está-se borrifando para a carta;
o "tangas" - diz que vai, arranca, mas procura uma doença como alibi, só para o caso de alguém perceber que Garcia nunca recebeu a carta;
o publicitário - antes de ir já todos sabem que vai levar a carta (e será que leva?);
o medroso - o cão do Garcia é bravo e não deixa aproximar;
o merdoso - p'ra quê?
o advogado - ameaça não ir, provocando uma reacção inesperada no autor do pedido, que certamente, um dia, usará a seu favor. Paralelamente avança com uma acção, ainda sem saber porquê.
o engenheiro - faz um cálculo das consequências da entrega da carta, estimando, com rigor apreciável, a população que sabe ler, imprime o estudo e desmonta a impressora para retirar uma peça que desde o primeiro dia chocalha lá dentro;
o arquitecto - faz um esboço da montanha, do Garcia e do emissor, esmerando-se na pessoa do Garcia, desenha esquemas (com quadradinhos) e pinta-os, mete-lhe um vegetal por cima e une com setas;
o formal - marca uma reunião para que o assunto seja tratado (atendendo à incompatibilidade de horários, marca uma reunião prévia, para marcação da primeira). Quanto à carta, digitaliza-a, para que todos tomem conhecimento;
o informal - entra na casa-de-banho, apanha um tipo a saír da retrete e pede-lhe logo ali. Como recompensa paga-lhe um café - ao fim de uma hora, o outro consegue finalmente lavar as mãos.
o taxista - inicia uma "volta turística", sempre a dizer mal do governo e alternadamente a dizer bem;
o formal - vai, se lhe pedir por fax;
o mulherengo - tem precisamente naquele momento "uma gaja boa p'ra comer";
o gajo que fala mais do que faz - tem precisamente naquele momento "duas gajas boas p'ra comer" (na verdade, toda a gente desconfia que esta conversa toda é porque tem vergonha de dizer que é um gajo - mesmo assim só um e não dois);
a gaja - por um lado está com uma enxaqueca horrível. De qualquer forma teria ainda que arranjar as unhas e mudar de roupa;
a mãe da gaja - tem que ir tomar conta dos netos porque a filha se vai arranjar (o genro é um bostas que não ajuda em nada);
o boémio - vai, mas começa por beber umas cervejolas...até que o vão entregar a casa "podre";
o patrão - é a única pessoa que seria capaz de o fazer e, por isso, está sempre ocupado;
o porcalhão - 5 minutos depois de lhe dar a carta, retiramo-la com vergonha que o Garcia a veja;
o submisso - vai imediatamente, mesmo sem saber quem é o destinatário;
o médico - recomenda a forma correcta para ir, mas só se responsabiliza pelo método no exacto momento em que o prescreveu. Não dá esperança de vida.
o parvo - manda ir imediatamente, mas não diz onde;
o patriota - vai porque o país precisa (só que não vai);
o burocrata - quer um documento, "assinado por quem de direito", para capear uma pasta com impressos que utilizará para documentar não só o pedido, como a própria ida. Há também que posteriormente conferir tudo isso;
o conflituoso - não fala com o Garcia, nem com a mulher, senão iria certamente;
o maricas - não vai porque Garcia já foi mal educado com ele;
o revoltado - discursa e pragueja porque sempre que há confusão é ele que vai levar a carta (só que perde-se a discursar e também não vai);
o gajo que me irrita solenemente - é p'ra ir?
o chefe - pediram-lhe para ir, não percebeu nada porque sabia desde o início que ía mandar outro, o que faz de imediato (não verbalmente, mas através de Post it);
o tótó - volta tardiamente com a carta, com a certeza que andou muito próximo, senão na própria rua;
o utópico - vai, no dia em que todos recebam uma carta;
o aldrabão - aparece horas depois, dizendo que já foi;
o economista - vai, se for dedutível, de acordo com um plano, que vai mandar fazer;
o charlatão - mostra um papel qualquer da sua empresa, procura letras suficientes para fazer um palavrão como ISO, OSHA, ASNO, e utiliza-o como argumento para facturar, duplicando toda a papelada para que o Garcia também pague o mesmo serviço;
o excêntrico - diz que não vai, mas sempre pensando ir (acaba por não ir porque alguém se desorienta com a sua frontalidade);
o sabedor - marca a ida para uma 6ª feira (após 5ª feriado), isto porque adora passar férias naquela zona;
o taberneiro - leva um pratinho com umas coisas saborosas e carregadas de sal, na esperança do Garcia mamar umas cervejas (acaba não indo porque se entretem a tentar falsificar o conteúdo das garrafas);
o futebolista - teria um orgulho louco em ir, mas tem uma coisa no joelho e não sabendo o que é, prefere não arriscar;
o ecológico - iria, se houvesse uma bicicleta;
o pintas - vai, mas só depois do ginásio;

de novo, o gajo que me irrita solenemente - sempre é p'ra ir?

e o desgraçado do Garcia à espera...



enfim, há mil e uma razões para que não se leve a carta a garcia

Será que há, afinal ,alguma razão para a levar?

2 comentários:

Anónimo disse...

Faltou o Estafeta...

Carlos disse...

Obrigado pelo comentário.
É certo que faltou, mas algumas destas caricaturas adaptam-se perfeitamente ao estafeta, consoante o tipo.
Faltam, por exemplo o apressado, o tisnado (com a abertura do capacete marcada a pó), o arranjadinho. Mas considerei o tótó, entre outros.
Um abraço,