quinta-feira, 30 de julho de 2009

Fui poema

Do teu fado saíam
Gaivotas
Gaiolas
Guitarras
Colares
Navalhas
Um terço
Uma velha
Um padre
Um mendigo
Eu voei com as gaivotas
Abri as gaiolas
Toquei as guitarras
Guardei
A sete chaves
Os colares, as navalhas e o terço
Dancei de roda
Com a velha, o padre
E o mendigo.
Eu fui poema, meu amigo

A minha rua

A minha rua tem vasos de malvas nas janelas
E hortelã nos canteiros
Na minha rua abrigam-se pássaros
Dos que rasgam oceanos
O sol põe-se tarde, vermelho
E os céus são aguarelas por pintar

Ali na minha rua há lápis coloridos
Que enfeitiçam as fachadas
Leves melodias, allegros e outras cantorias
Encantam cigarras e grilos
Ao som de velhas telefonias
Que resistem à evolução das espécies

Eu sou a minha rua.
Tu és eu.
Não sei porque te digo isto.

Figueira

De verde vestida
Virados aos céus
Teus braços abriste
Clamando p’los meus

Em mim tu sorriste
E vi como és
Um corpo da terra
Teus seios dois figos

Dá-me o teu odor
A tua textura
E sonhos de amor

Com tua candura
Vela bela flor
Minha sepultura

Conquista-mor

O amor que me tens é teu
Ainda que mo dês como flores frescas
E receba seu perfume como soro de vida
Lembra-me o sol na janela
Inundando-me através as frestas
Em inesperadas manhãs de Primavera

Não me pertence pois
Se o agitas
E me gritas
Quando me amas depois

Não é meu
Se destroçado
Te deitas a meu lado
Me saras as feridas
E me rendo

Amo-te meu amor
Mas não me vendo
De uma vez só
Todos os dias me dou
E cada vez mais

Um velho

Na Alameda
À Rua Carlos Mardel
Um baralho de cartas
Bastou para te ver feliz
A copa densa da árvore
Sem nome
Abriga uns quantos pombos
Que vêem passar a vida
Como tu

Luso, não Lusíada

Hoje vi um cardume de peixes
Dei-lhes um pouco de pão e sorri
Mas não os tomei como meus
Nem lhes roubei o mar
E todos os aquários ficaram vazios

Todos os aquários ficaram vazios
Ainda que fales das espécies que nasceram para viver em aquários
E vejo-os no mar. Rio
Ainda que não me saibam responder

A minha língua é minha e
Ainda que não os encontre na missa
Esta é a minha riqueza
E o mar nunca será meu.

Do sofá, ou o ciclo da dúvida existencial

Disseram-me que o céu está repleto de bondade
E o tempo corre sem pressa
Não há fome e nem tristeza
E não há lágrimas
Nem de rir, nem de chorar
Não há qualquer aspereza
Nem sequer gravidade
Tudo então é leve

Hesito…
P’ra que quero eu um tempo
Em que a água corre doce
E o oceano não conhece o sal das lágrimas?
A inércia, quem despertará dos corpos?
a que saberá o doce sem o pleno conhecimento do amargo?

Fico…
Decididamente sou da terra
Que raspo com as minhas mãos
Como se me beliscasse
Arranho minha delicada pele
Em confirmação

Choro…
De fomes que não tenho, mas que busco a mim
Do dia-a-dia em permanente modo de sobrevivência
A que vou resistindo, eu que choro
Do sofrimento alheio
Da ganância dos outros, que não me atinge
Eu tinjo meus trapos de sal de lágrimas

Mudas para o primeiro canal
Do teu naperon saem garças das que limpam os bois à beira-rio
E corações rendilhados
Como se fossemos indiferentes a tudo isto
Questionamos o sentido que nem sempre a vida nos proporciona
Pensamos em morrer, como solução

Flor do vinho

A flor do vinho são meus lábios
É pois na minha língua que ele floresce
E se desprende em odores
De mulher quente.
Percorrem-me seus passos de veludo
Todo eu sou agora gente

A flor do vinho são meus lábios
Corola colorida
Por onde escorre, denso
O néctar cor de sangue
Que me entorpece
E funde corpo e alma

A flor do vinho são meus lábios
Por onde suavemente
Sibilinas palavras
Soltam-se como pombas
E
Me entregam a ti, Mulher.

Se Deus te fez nuca,
Pescoço, seios,
Cintura, anca, púbis,
Nádegas, coxas, pernas e pés
Fez também o vinho, esse Deus
Que é flor em meus lábios

Como tu.

Existes?

Ao poeta Filipe Campos Melo

Ah!
Que bela esta marcha de mil homens
Estandartes, passos certos, alinhados
Uma fanfarra afinada, cavalos brancos
Crinas longas e leves, entrançadas aqui e ali

São poetas,
Poetas aspirantes
E profetas

São o que são,
O que vêem
O que sonham

São salivas, risos, lágrimas
Palavras ditas
E as que por galhardia nunca foram escritas

(Detenho-me na música dos cascos
Emociono-me, uma vez mais e outra
Galopo contigo)

Se existes?
Eu acredito que sim
Mas nada do que eu digo faz muito sentido

Por uma noite de amor

Quero
Tudo num segundo
Num instante ser eterno
Abraçar o mundo

Quero
Beber as palavras
Que se dizem
Na euforia

Quero
Tragar teu cheiro agridoce
Trazer de volta a Primavera

Quero
Teu corpo morno
Tua alegria

Quero
Como o Louva-a-deus
Que se dá
Por uma noite de amor

Partir, Soneto-e-um-verso

A certeza em que estou
Sinto na terra meus pés
É a de saber que vou
Ambas certas, sem porquês

Incerto será depois
Sem saber quando há-de ser
Nunca tal se antecipou
Apenas que vai morrer

Sei que um dia vou dormir
E não mais irei voltar
Façam-me adeus a sorrir

Não invistam em primar
Não aprumem meu vestir
Na terra quero tocar

E assim simples, serei flores da próxima estação

Nortada, Soneto-e-um-verso

Sou a árvore das palavras
Na mais linda primavera
Sou, da poda severa
A novos verbos me rasgo

Sou da terra que lavras
O fim da estação austera
Sou o mundo que renasce
Sou eterna descoberta

Meu presente agora incerto
Em poema declamado
À força dum peito aberto

Não é verso acabado
É prenúncio de Eu liberto
É desejo de nortada

E decerto a rajada trará renovação

Biologia do poema da criança que chora

Há um poema duma criança que chora
Que não te deixa indiferente
Toca-me a tua revolta e
Não resisto a dissecá-lo

Estrofe, verso, palavra, letra
Paro numa qualquer vogal
Aproveito a pausa e
Foco um ó

Ao primeiro corte obtenho dois cês mas
Não me detenho e recorto.
Surge a molécula
E átomos, por fim
(Limitações económicas levam-me a assumir o átomo como indivisível)

TODOS OS ÁTOMOS SÃO IGUAIS

Onde acaba a criança que chora e começas tu?
Lágrimas, letras, papel
Dor, ardor, horror
Sou tu
Sou papel
Sou tinta, letra, lágrima, lápis, luz e lua
Sou átomo, astro, criança, criação

Sou a criança que chora, por temor
Que abraças agora, como a mim
Em teus braços não existe fim.
Eu sou tudo, meu amor

Biologia do poema da criança que chora

Há um poema duma criança que chora
Que não te deixa indiferente
Toca-me a tua revolta e
Não resisto a dissecá-lo

Estrofe, verso, palavra, letra
Paro numa qualquer vogal
Aproveito a pausa e
Foco um ó

Ao primeiro corte obtenho dois cês mas
Não me detenho e recorto.
Surge a molécula
E átomos, por fim
(Limitações económicas levam-me a assumir o átomo como indivisível)

TODOS OS ÁTOMOS SÃO IGUAIS

Onde acaba a criança que chora e começas tu?
Lágrimas, letras, papel
Dor, ardor, horror
Sou tu
Sou papel
Sou tinta, letra, lágrima, lápis, luz e lua
Sou átomo, astro, criança, criação

Sou a criança que chora, por temor
Que abraças agora, como a mim
Em teus braços não existe fim.
Eu sou tudo, meu amor

Vou

As andorinhas sempre voltam como eu, na primavera

As chaminés de agora são zincadas
E as antenas mágicas
E o cúmulo, a verdadeira nuvem
Que desenhámos na infância
E que voa como um balão inflado

Quem me dera perceber o céu e te dizer
Todas essas coisas. O cio de todas as espécies
E levar-te na grande viagem

Não se te inflama o peito quando digo, anda daí?

Faço as malas para a grande partida
Arrumo meticulosamente os meus nadas
Que para mim são tudo
Porque nada mais importa, se vieres comigo

Do chão seguro, Soneto-e-um-verso

Atasca-se o humano em movediças
Areias que o engolem ardilosas
De firme pedra semelhantes fitam
O que sempre verso, era agora prosa

O vento seca lágrimas ditosas
Do nobre percurso percorrido
E o pobre ensandece ao ver-se ir
No lodo nada digno do ofertório

Assim, crescendo o mar direito a si
Antecipa-se epitáfio banal
Transcrevendo uma vida assim-assim

Descrita num anúncio de jornal
Com cruz e anunciada missa
7 dias após o funeral.

E não mais haverá festa…

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Sem ti

Sem ti

Aranhas tecem teias de infinito
Abelhas salpicam-se de mel
E tu?
O que não queres de mim?
Sinto-me um javardo num colégio de freiras
Em dia de comunhão
Sem ti
Não posso ser
Sentir,
Sem ti

Poetas do futuro

Poetas do futuro

Eu brindo ao futuro
Em meus versos
Porque é de futuro que tratam
E só no futuro serão lidos e ditos
Se ainda no presente os escrevo

Dos poetas
Que escrevem
O que vêem no passado, no presente
Premeditando em utopias o futuro

Aqui neste sítio de homens e mulheres
Sonham poetas os sonhos da humanidade
Porque contemplam o outro
E abraçam-no
Porque o sabem ser essencial.
Então oferecem-se sonhos
Por flores
Bebem-se letras
Por vinho
Manifestam-se alegrias,
Sensações, tristezas, desencontros, desenganos
Apaixonadamente

E o futuro é novo dia
Também para os poetas
Pois nada sabem
Senão a realidade do universo

Aqui,
Agora
Suspendo as melancolias
Neste sítio de homens e mulheres
E vejo em cada verso um novo dia
E brindo ao futuro em cada verso.

Minipoema da madrugada, para Alberto Caeiro

Minipoema da madrugada, para Alberto Caeiro

“A espantosa realidade das coisas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada coisa é o que é,
E é difícil explicar a alguém o quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta”

Melros dialogam com o galo
Chapins chilreiam
Piscos saltitam alegremente
No meu quintal
E quanto isso me basta

Ouço o primeiro comboio
Destino Lisboa
Levianamente fumo um cigarro
Enquanto isso me basta
Mas é cedo e regresso ao sono.


A primeira estrofe é extraída de “Poemas inconjuntos”, Alberto Caeiro, Poesia, Assírio &Alvim, Lisboa, 2001, que conheci no Livro”wordsong Pessoa”, wordsong, 101 noites e Transformadores, Lisboa, 2006

Um brilho na favela

Um brilho na favela

Bela!
Bela é tua janela
E brilhas-me nos olhos

Inebrias-te com ritmos
Que trazes no coração
Descalços dançam teus filhos
Que não vão à escola

São restos da saciedade
De uns homens

São órfãos da sociedade
Num recanto da cidade

Porque o sol se espelha
Na tua janela
Mas nela não entra?

Restos de vida num homem com nome

Amparas-te numa mini
(o chão está traiçoeiro)
Esses são teus caminhos
Da tua harmónica saem restos de cantigas

Velhaca, a tua vida

Já não se riem de ti
Já nem te olham das janelas
Jamais te ajudarão

Velhaca, a vida, no geral

No teu torno trabalha agora um jovem com futuro
No teu velho leito dorme um senhor (quase encarregado)
Que é quem assa agora os frangos, ao Domingo

Depois do Tejo

Depois do Tejo

Não basta passar o Tejo
É preciso avistar um sobreiro
A primeira cal contrastando o ocre
Para que me sinta em casa

A terra, o trigo, a cortiça
Atravessam meus tantos poros
Irrigando meu sentir

No poial polido
Trocam-se histórias de infância
Sorrisos sinceros
E silêncios celestiais

Olha uma estrela cadente
Diz o pequeno

A vida sulca a tua tez escura
Desgasta o negro feltro em teu chapéu
Mas minh’alma em ti perdura
Meu simples mas pleno Alentejo