sábado, 21 de fevereiro de 2009

7 e 41

Pontualidade
Britânica, ou talvez suiça
Aparelhagem.
Todos os dias, por duas vezes
O relógio parado da cozinha
Dá horas certas.
Não mais, nem menos,
Duas vezes ao dia
O dia bate certo com o relógio.
Pudesse eu mandar no tempo e
Como correria um dia
P´ra estancar no seguinte.
A eterna indecisão entre
A ânsia do futuro
E o medo do passado. Mas
É o tempo quem lidera
E se esconde
Atrás do que já não é. Mas
O relógio parado da cozinha,
Sem passado, nem futuro
Está avariado, o tempo
Só eu, eu vou andando.
Certo é que morrerei
E na cozinha, parado
O relógio
Às 7 e 41.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Lide

Semente que germina à lua
Que bebe os prazeres da noite
E se alimenta de orvalho

Raíz que se firma à terra
Ventosas prendem-me à vida
Me sustenho vigoroso

Caule que cresce ao sol
Que endurece sem partir
Sem moleza me vergo



Acenas-me com farpas
Pavoneias com capotes
Aplaudem-te as concubinas

Apruma-te pois nas sortes
Que eu não me deixarei matar
Por um homem de sabrinas

A normalidade

O mundo "normal" nos atrai.
Enquanto atrai nos distrai.
E porque nos distrai nos trai.
Se nos deixamos trair, ele nos destrói...

Hermógenes





Gaivotas me cercam neste céu cinzento
Cerceado estou em minha insanidade
Plebeu em corte de felicidade.
No amor busco deslumbramento
‘Inda no mar se atiça a tempestade
Da qual sou só sobrevivente.
Justo me está o fato do lamento
Que antecipo tamanha crueldade.

Em forte resistência padeci
Batalhas penosas que guerreei
Certo como o pouco que vivi
Ser normal, em tudo me tornei.
Alegres loucuras me tomei
Agora tristemente percebi
Dos furacões a que sobrevivi
Nunca liberdade granjeei.

Testamento tibetano

Adeus, corpo outrora indigente.
Abutres esfomeados me vigiam
Jaz minha roupa ainda quente.
Em greda escura, cutelos se afiam

No cume assoma-se prudente
Uma alma última vez e me alumia,
De mim se despede na vigília
Para enfim se diluir na outra gente.

Segue o rio rumo à felicidade
Se a trilhos rústicos da vida te forcei
Apenas do amor a saciedade

Ainda antes do regresso à cidade
Onde outrora um dia te encontrei
Reencontrarás beleza e mocidade.

Morrer a rir

Era uma vez
Treze homens a uma mesa
Treze garfos
Treze facas de trinchar
Que eu já não conto.
Músicos também treze
Tocam músicas de embalar
A morte.
O cheiro a carne tostada,
Adocicado,
Perturba os treze,
Que debaixo das suas vestes,
Negras e triunfais,
Não resistem aos enjoos
Curvam-se.
Um a um, até treze,
Vomitam angustiados.

Das suas mãos enfraquecidas
Pende o talher.

A rúcula já não é viçosa,
-Como estou quente, penso
E estalo.

Tento mexer-me mas não consigo
Talvez bebesse vinho, se pudesse
Paciência, penso se vedado me está o falar
Em pensamento esboço também um sorriso
Um sorriso de quem assiste ao seu último triunfo
Um sorriso de glória.

Treze, vivos, com medo da morte.
A minha querida morte, que agora os enjoa.

-Mataram-me, agora comam-me! Grito, por dentro.

Lá fora a manhã, cada vez mais cinzenta…
Um canário esvoaça, livre.
E eu arrefeço.

Amor

Amor.
Peçam-me tudo
Mas não que fale de amor
Que direi eu?
Que “é fogo que arde”?
Que “melhor seria arrancar um braço”?
Peçam-me tudo
Mas não que fale de amor
Mata-se por amor
E morre-se por amor
Sofre-se e Vive-se

Num dicionário vi que amor é“Viva
afeição que nos impele para o objecto dos nossos desejos”…
Desejos…
Tão incompleto seria eu,
Se escrevesse o amor

Sou dos que lêem livros de instruções e digo-vos
Que não é assim o amor

Falasse eu
De lágrimas nos olhos
De um nó na garganta
De um formigueiro no peito
Descreveria o amor?

Escrevesse eu
Do mais belo e horrivel sentimento
Que é o amor.
Escreveria eu amor?

Ousado o pedido
Ousado pedir o amor
Se o amor
É.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Cartucheiras de ódio

Chora mãe, teus filhos
Que sem escolher religião
Comungaram maldição
Se perderam em caminhos.
Não esperes do céu sorrisos
Antes balas de canhão
Que sem esperarem razão
Nem mandarem avisos
Não os levam sozinhos.

Chora pai, teus irmãos
Que brincaram contigo
E na guerra sem razão
Fazem agora abrigos
Onde outrora se esconderam.
Ali, na rua do lado,
Morre agora um amigo
De outra religião.
Não merecia o castigo.

Chora avô, a mocidade
Que se entrega à tortura
Fazendo a vida escura
Escurecendo a cidade.
Será amor ou loucura
Que em eterna jura
Os leva à morte mais pura
Na sua mais pura idade
E o ódio, perdura.

Sangue, corpos destroçados
Retratos de infância rasgados
E ódio, nas cartucheiras.

Polaroid, em tons de negro

Rua do Ouro, de óculos escuros
Um homem persegue a berma
Agarra-se à confiança na bendita
O estalido seco da bengala afasta os demais
Como se ao evitá-lo fugissem à realidade
O sinal fica vermelho, sabe-o
E tem que ser o primeiro a partir
Porque no verde a multidão cega e engole os mais fracos.

Cheira-se o Tejo, ao longe
Novo cruzamento, onde está um homem-estátua
Que não vê e passa-lhe ao lado
Dois japoneses tiram um retrato junto ao D. José
Observam a sua destreza e seguem fotografando.
Para onde vai? diz-lhe uma senhora
Que lhe dá o braço e atravessa a última estrada que o separa do mar
Do outro lado, afasta-se sem despedidas
O homem, acostumado, também não agradece
A vida em tom escuro apagou-lhe o sorriso

Num banco de pedra sonha com o mar,
Que nunca lhe contaram.
E sonha-se gaivota que nunca viu voar
Ouve o grito dum barco
Que lhe vibra corpo adentro.

Mas não grita.

Se ao menos pudesse chorar…
Soltaria num lamento
Que um homem sem sentidos
Também tem sentimento.

Mas não chora.