-Diz lá isso outra vez...
-Puta, a tua irmã é uma puta, P-U-T-A! E não a quero cá!
Eduarda recolhia assim para a sala, com o semblante marcado pela palidez de quem acaba de perder metade do seu sangue.
Leonor, cega de nascença, era a única que trabalhava para a dar alguma dignidade àquela pocilga humana. Às 9 em ponto atendia o primeiro telefonema, a 15 quilómetros dali, tarefa que repetia ininterruptamente até perto da hora de jantar (não querendo com esta expressão, propor que se chame refeição a algum dos momentos em que aqueles seres meio vivos, mais a pobre da Leonor, ingeriam algumas sobras da Marisqueira do Rés-do-chão).
Era ela que passava no restaurante e recolhia os restos, por caridade de Samuel, o filho do dono. A irmã e o Zé Vasco, que insistia em impor-se naquela casa, ainda por cima com o direito da última e quase sempre única palavra, quase sempre comiam do balde, como se também fossem cegos.
Desse Zé pouco ou nada se sabia - presumia-se apenas que iria morrer sem experimentar trabalho digno ou horário certo, apesar de não parar em casa, o que convinha a Eduarda. Eternamente deprimida, levava o dia a fumar em frente à televisão, com medo que ele chegasse e se pusesse em cima dela, a tresandar a vinho, incapaz de fazer o que fosse, senão culpá-la de todas as suas inactividades.
Era Natal, o que ali apenas significava que Leonor permaneceria em casa. Zé Vasco acabara de chegar. Leonor deu por ele porque já experimentara aquele hálito a vinho e sentia-o à distância.
Samuel já enfiava as fraldas da camisa nas suas calças pretas, pronto a fugir.
Zé Vasco, que nunca pensara no futuro ou no passado, não hesitou em correr com os dois, gritando a Leonor que não voltasse.
Eduarda, reuniu forças e levantou-se. Apagou o cigarro e já só viu a sombra da irmã na escada. - O que fizeste, Zé?
-Puta, a tua irmã é uma Puta!
segunda-feira, 21 de janeiro de 2008
Natal dos pobres
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